Quer um saquê? Tá quentinho!
Pode parecer um tanto incomum para nós que vivemos em um país tropical, pensar que a bebida que acompanha nossa refeição possa ser servida tão ou mais quente que a comida.
Por essas bandas aqui a cerveja está sempre estupidamente gelada, e o vinho por muitas vezes é acompanhado de um balde de gelo independente do seu estilo. É cultural que o brasileiro prefira sua bebida “trincando”. Com uma temperatura média de 32ºC o ano inteiro, a pedrinha de gelo é dos itens mais cotidianos.
Com o saquê não seria diferente. Um amigo serve em seu prestigiado restaurante garrafas de saquê quase congeladas, com uma sedutora capa de gelo brilhante que reveste a garrafa. É sucesso, claro. Em uma noite de verão é exatamente o que se quer para acompanhar deliciosas fatias de Toro servidas sobre gelo triturado.
Mas imagine comigo uma noite de inverno. Os termômetros marcam qualquer digito abaixo de zero, e se acumulam dois metros de neve lá fora. Você caminha apressado ouvindo apenas o barulho dos seus passos na neve que de tão fofa parece areia. Enfim em seu destino, você abre uma leve porta de correr, e passa pelo noren. Senta-se no balcão, e o atendente do outro lado apressa-se em lhe servir uma fumegante tigela de Oden. O que vamos beber para acompanhar? Um Junmai vai muito bem aqui, claro. Mas... gelado?

As bebidas quentes são parte do cotidiano japonês. Seja um chá, o saquê, ou apenas água. Ainda nos dias de hoje, aquecimento por calefação no Japão é um luxo que nem todos os estabelecimentos e nem todas as casas possuem. Desta maneira, uma confortante bebida quentinha é o que se espera.
Conta-se que o consumo do saquê quente vem de muitos séculos. Cerca de 300 anos antes de Louis Pasteur descrever o método de esterilização de alimentos por calor, que leva seu nome e ficou conhecido como “pasteurização”, o japonês já utilizava o calor como maneira de conservar o saquê (vide o super post do Fabio Ota sobre pasteurização aqui!). O saquê servido quente já era comum por lá e pode até ter originado a aplicação da pasteurização no processo de produção. Pouco se tomava de saquê frio até o surgimento dos estilos aromáticos nos anos 80.
Na literatura e poesia japonesa é muito comum encontrar trechos onde o saquê quente é mencionado, e nos muitos restaurantes e Izakayas, os saquês são servidos em uma ampla variedade de temperaturas á gosto do freguês, independente da estação do ano.
Nos Ryoteis, tradicionais restaurantes de alta gastronomia japonesa, existe uma profissional dedicada (sim, geralmente é mulher) para a arte de aquecer o saquê. É necessário muito estudo e preparo para conseguir atingir exatamente cada temperatura solicitada pelo cliente, que leva um nome específico, conforme a tabela abaixo.

Então não estranhe se a pessoa ao seu lado no balcão pedir um saquê Nurukan. Ele não quer o saquê de um novo produtor que você ainda não conhece, e sim, o saquê servido a 40ºC. É muito útil, aliás, ter essa tabela na ponta da língua se você vai a um jantar de negócios, ou com o chefe japonês. Saber pedir um saquê em sua temperatura adequada, é sinônimo de classe e cultura, e sempre impressiona.
Tenha em mente, todavia, que não vale a pena aquecer o seu Daiginjo. Nem todo saquê é apto para o aquecimento. Os saquês aromáticos como os Ginjos e os Daiginjos ficam melhores se tomados fresquinhos. Ao aquecê-los, os ésteres de aromas se volatizam com a alta temperatura, e estes deixam de ser aromáticos, perdendo suas características.
De maneira geral, os Junmais, Honjozos e os Futsushus são os mais adequados para se tomar quentinho! A temperatura faz evaporar parte do álcool, o que ao mesmo tempo que o deixa levemente menos alcoólico, também faz com que este esteja mais perceptível. O saquê quente, tende também a parecer mais seco na boca, e acompanha muito bem pratos mais gordurosos como um Karaague ou Yakitori, ou Nabemonos (pratos quentes), como um oden, sukiyaki, ramen e etc.
Para aquecer o saquê, usamos o Tokkuri, a garrafinha de cerâmica que muitas vezes faz conjunto com o chokko (copinho). Mergulhamos o Tokkuri até o “pescoço” em uma panela com água quente, o famoso “banho maria” do brasileiro, e aguardamos até que a temperatura desejada seja atingida.

Esta é a maneira mais tradicional de se aquecer o saquê. Não é um processo demorado, e o fazemos rapidinho nos restaurantes, mas exige alguma prática para reconhecer as temperaturas.
Há quem diga que é possível esquentar também no micro-ondas, mas eu sinceramente não recomendo. É comum que no micro-ondas o aquecimento não seja homogêneo, e a bebida costuma esfriar mais rápido. Existem ainda as máquinas de aquecer saquê, que lembram muito uma cafeteira. Você coloca o saquê em um recipiente da máquina, ajusta a temperatura em um painel, e aperta um botão para ter a bebida quentinha. Mas esse é um sonho de consumo difícil de se encontrar por aqui! Rsrs.
E agora que você já aprendeu a esquentar o saquê, que tal experimentá-lo em novas temperaturas?
A variedade de temperaturas que o saquê permite, e a maneira com que ele muda em texturas e sabores de acordo com cada temperatura, certamente permite uma variedade de harmonizações que não seriam possíveis com outras bebidas.
Me conta a sua prefrerida!
Kampai!
Por Andréa Machado Sake Sommelière